quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Meninos-homens [tributo aos solitários que têm a calçada imunda por sepultura]






“Vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarros, eram em verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas.”
Capitães da Areia [Jorge Amado]

           
O brilho daquela noite destoava imensamente com a figura do menino esfarrapado e sujo, que a luz da lua insistia em não ocultar. Como que um tributo ao sofrimento daquele menino-homem, uma bela lua cheia reverberava pela imensidão da noite. Temeroso de ser encontrado embrenhara-se naquela beira de estrada. Temeroso de ser encontrado. Provavelmente ninguém o procurava, e a cada momento isso o angustiava cada vez mais. Em cada instante de fome, de frio ou de cansaço esse pensamento retornava a sua cabeça. E retornava como reflexões incrivelmente profundas para um garoto. Realmente não era mais um menino. A barba singela incrustada em seu queixo denunciava os muitos anos sofridos nas ruas. Em princípio contava os dias, mas a operação se tornou dispensável com o acúmulo invariável de dias todos iguais. Iguais em descaso, iguais em sofrimento, iguais em ausência e principalmente, iguais a de outros tantos meninos de rua. Mas o longínquo período habitando vielas insalubres contribuiu para o seu rápido amadurecimento, os ambientes inadequados o compeliam a um rápido envelhecimento. Com toda a certeza, o seu rosto não era um dos mais requisitados para as luxuosas propagandas de cosméticos. Alias o seu rosto enegrecido pelo sol do sul dos trópicos não são os melhores indicadores de que algum dia ele tenha se aproximado de um sabão neutro ou de um creme-hidratante, palavras que ouvira dizer em uma conversa entre duas madames da parte alta da cidade, palavras que obviamente não lhe expressavam nada. É como se fosse invisível ao restante das pessoas. Mas todos são iguais perante Deus, palavras usadas por um pároco que escutara uma vez no reformatório. Mas por que então todo aquele ódio, todo aquele desprezo, aquela completa e irreversível falta de consideração. A sua cabeça não entendia essas coisas. Ele talvez só fosse um menino grande. Um menino forte, apesar do extremo sofrimento e dos continuados descasos do Estado. Um menino que na mais tenra idade já sofria devido à extrema pobreza. Um menino-homem que compreendeu que a causa de seus problemas é a profunda desigualdade existente. 
Um sobrevivente das ruas. Um sobrevivente que como outros tantos milhares ainda encontram-se despojados das necessidades mais básicas, negligenciado por aqueles que deveriam defendê-lo. Esquecidos e achincalhados por um sistema corrupto e irracional que não proporciona  condições dignas aos futuros cidadãos. A sua cabeça agora zunia, deixando seus pensamentos confusos e desconexos. A miséria e a longa vida de indigente cobravam seu preço. Com a saúde muito frágil eram constantes aqueles mal-estares, talvez tudo isso não passasse de mais um triste delírio. Um dia acordaria e não seria preciso furtar, nem se esconder. Talvez um dia a sociedade garantisse alimento a todas as pessoas. Sonhos ainda muito distantes para a sua realidade. Seu corpo agora aparentava como a de um faminto que ele era, os seus músculos fraquejavam em tentativas inglórias de se movimentarem. A fome e a carestia silenciosamente estavam finalmente conseguindo submetê-lo a seu jugo. Gargalhadas soaram ao fundo. Devia ser outros garotos rindo das lágrimas que agora já escorriam em seu rosto. O ridículo da situação era que o menino sujo e esfarrapado havia entendido a brevidade da vida. A noite ensolarada ia se fechando paralelamente a seus olhos. Finalmente a liberdade prevalecia à opressão. Libertava-se de um corpo que já lhe havia oprimido imensamente. Chuvas e raios e trovões surgiam ao horizonte. Astros e estrelas observavam perplexos os suspiros finais de um homem. Agora se tornara verdadeiramente um homem. Um homem consciente de sua brevidade, ciente da imensa injustiça em se existirem meninos de rua. Calmamente a natureza oferecia as derradeiras honrarias ao padecimento dos solitários que têm a calçada imunda por sepultura.

(Edson de Sousa)





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