quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

PAISAGEM EMOLDURADA, de Edson de Sousa

Às vezes ao olhar pela janela não sei bem definir se o que vejo é de fato a paisagem. Vejo contradições entre os homens. Desenvolvimento infinito e progresso ilimitado moldam um pensamento contemporâneo insustentável. Seus sentimentos são fúteis e transitórios. Seu conhecimento limitado às esferas práticas da vida, superficiais e intolerantes. Sinto que por debaixo de toda a vida contemporânea existe uma injustiça latente. O explorado se alegra ao perceber que os grilhões que o enclausuram reluzem como ouro. Impudica situação em que os exploradores já não temem que uma plebe alienada se revolte. As lutas camponesas, as greves gerais, o feminismo e seus sutiãs queimados, a contra-cultura e as drogas alucinógenas, os movimentos hippie e punk, o rock como alternativa ao conservadorismo hipócrita. As grandes manifestações estudantis, os caras-pintadas, a guerrilha escalpelada pela ditadura, a MPB raivosa e cedenta de um novo país. O PCB, a intentona comunista, o modernismo heróico e sua irreverência, os anarco-sindicalistas, os pasquins censurados, os grandes festivais, os hinos à liberdade de expressão e as utopias que movimentaram uma nação empobrecida pela exploração e pela desigualdade. Esse sentimento apesar de muito próximo de nós, já faz parte do passado. Parece-me que estagnamos a roda da fortuna, como se ainda não existissem trilhas íngremes a serem trespassadas. A cada momento que não nos atiramos ao clamor da batalha, às utopias suicidas estamos negando um legado que nos foi entregue pelas mãos sôfregas de nossos antepassados.
Necessitamos reaver um certo espírito de contestação, de enfrentamento diante da ordem vigente, de caráter radical e estranho às forças mais tradicionais. Devemos sim combater a globalização predatória, a privatização de nossos recursos naturais, preservar a soberania dos povos e erradicar primordialmente a pobreza extrema. Assegurar saúde, educação, moradia, saneamento básico e segurança de qualidade e sem distinções. Liberdade de acesso à informação, igualdade de condições entre as diversas classes sociais, a livre expressão de pensamento político, artístico e científico. Construir estradas e portos, universidades e hospitais, creches e asilos. Um governo do povo, para o povo e pelo povo. Devemos sim respeitar idéias divergentes e sintetizá-las em uma forma única de compreensão em um mundo miscigenado pelo contato de arquipélagos antes isolados e distantes. Com o tempo readquirir àquele sobressalto que os gênios possuem ao perceber que somos seres vivos orbitando misteriosamente por um universo desconhecido ao redor de uma estrela cintilante. Seguramente descobriremos que na Via Láctea existe vida inteligente, versátil e criativa imersa em problemas sociais insolúveis e crises econômicas desgastantes. A vida é uma aventura alucinante da qual não sairemos vivos.
De repente, movido por uma vontade súbita e incontrolável de vislumbrar algo antes ignorado, com as mãos trêmulas e os pensamentos arrefecidos por uma tranqüilidade incomum, aproximei-me novamente da paisagem emoldurada pela janela receando que a verdade sussurrada aos nossos ouvidos nos seja incompreensível por ainda hoje continuarmos agarrados apenas às verdades que nos fazem sorrir.