segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Retrospectiva 2010


















Quem sabe, em anos longínquos, escafandristas descobrirão inusitados vestígios do ano de 2010, e perceberão que esse foi o ano da esperança. Enquadrado como o ano da consolidação com Lula e seus companheiros da centro-esquerda brasileira, o ano em que no Chile, 33 homens presos em um refúgio a quase 700 metros de profundidade foram salvos por meio do esforço conjunto de várias nações. Mobilização que transcendeu fronteiras e velhos preconceitos. Também foi o ano em estancou-se a poderosa retórica do combativo José Saramago, que nos ensinou que ainda é possível sonhar com uma sociedade mais equânime e solidária. Além das sempre recorrentes disputas políticas, tiveram lugar uma eleição que fortaleceu e ampliou a democracia brasileira com a eleição da primeira mulher (Dilma Rousseff) ao cargo de chefe do executivo. Foram meses também em que graves crises e protestos estouraram em todo o mundo. Grécia, Irlanda e Portugal evidenciaram as fragilidades e contradições ainda existentes na Zona do Euro. Manifestantes expuserem às autoridades a força do engajamento e do ativismo em passeatas repletas de revolta e ousadia com a elite econômica e política de seus países.  O terremoto que devastou o Haiti, e o posterior surto de cólera, fragilizou ainda mais o país mais carente das Américas. A influência crescente do ideal integracionista fortaleceu-se no continente. Fato que vêm impulsionando líderes de esquerda como Hugo Chávez na Venezuela, Evo Morales na Bolívia e Rafael Correa no Equador, notadamente admiradores do Estado intervencionista e antiimperialista organizado pelos irmãos Raúl e Fidel Castro, em Cuba a partir de 1959. Mesmo nesse clima de inevitável confronto ideológico, 2010 provavelmente será lembrado como o ano em que surgiram inebriantes focos de esperança. A série de publicações realizadas pelo fundador do site WikiLeaks, Julian Assange, contribuirão para a revalorização e maior discussão à cerca da necessidade de existir uma maior transparência e um diálogo mais amplo entre governos e cidadãos. Além disso, a brilhante invasão do Complexo do Alemão e desmantelamento de parte do crime organizado do Rio de Janeiro intensificou e melhorou a convivência entre os moradores das comunidades atingidas e os policiais civis e militares. 
Talvez sejamos lembrados no futuro como as pessoas que iniciaram a construção de uma sociedade fundada mais no diálogo e na diplomacia do que no poder de canhões, os que primeiro se levantaram e gritaram contra as enormes injustiças e disparidades existentes. Talvez o maior desafio restante seja ainda a insolúvel disputa entre crescimento econômico e desenvolvimento sustentável - e a sua relação direta com a ocorrência de graves distúrbios ambientais ao redor do planeta. Apesar de não antagônicos, a busca por taxas exorbitantes de crescimento de vários países em desenvolvimento aceleraram e intensificaram uma vertiginosa degradação do meio ambiente nessas nações. Em 2010, as frágeis relações entre os países subdesenvolvidos e as nações ricas culminaram em confrontos em que ficaram explícitas as fragilidades do ainda tímido diálogo. Questões importantes como o excessivo protecionismo e a erradicação de subsídios nos países desenvolvidos não foram discutidas, assim como as possíveis e necessárias soluções para a diminuição das emissões dos Gases do Efeito Estufa (GEE’s) emaranharam-se nas turbulentas discussões entre o Norte e o Sul do globo. Terá sido 2010, “o ano que nunca acabou”?


(Edson de Sousa)

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Meninos-homens [tributo aos solitários que têm a calçada imunda por sepultura]






“Vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarros, eram em verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas.”
Capitães da Areia [Jorge Amado]

           
O brilho daquela noite destoava imensamente com a figura do menino esfarrapado e sujo, que a luz da lua insistia em não ocultar. Como que um tributo ao sofrimento daquele menino-homem, uma bela lua cheia reverberava pela imensidão da noite. Temeroso de ser encontrado embrenhara-se naquela beira de estrada. Temeroso de ser encontrado. Provavelmente ninguém o procurava, e a cada momento isso o angustiava cada vez mais. Em cada instante de fome, de frio ou de cansaço esse pensamento retornava a sua cabeça. E retornava como reflexões incrivelmente profundas para um garoto. Realmente não era mais um menino. A barba singela incrustada em seu queixo denunciava os muitos anos sofridos nas ruas. Em princípio contava os dias, mas a operação se tornou dispensável com o acúmulo invariável de dias todos iguais. Iguais em descaso, iguais em sofrimento, iguais em ausência e principalmente, iguais a de outros tantos meninos de rua. Mas o longínquo período habitando vielas insalubres contribuiu para o seu rápido amadurecimento, os ambientes inadequados o compeliam a um rápido envelhecimento. Com toda a certeza, o seu rosto não era um dos mais requisitados para as luxuosas propagandas de cosméticos. Alias o seu rosto enegrecido pelo sol do sul dos trópicos não são os melhores indicadores de que algum dia ele tenha se aproximado de um sabão neutro ou de um creme-hidratante, palavras que ouvira dizer em uma conversa entre duas madames da parte alta da cidade, palavras que obviamente não lhe expressavam nada. É como se fosse invisível ao restante das pessoas. Mas todos são iguais perante Deus, palavras usadas por um pároco que escutara uma vez no reformatório. Mas por que então todo aquele ódio, todo aquele desprezo, aquela completa e irreversível falta de consideração. A sua cabeça não entendia essas coisas. Ele talvez só fosse um menino grande. Um menino forte, apesar do extremo sofrimento e dos continuados descasos do Estado. Um menino que na mais tenra idade já sofria devido à extrema pobreza. Um menino-homem que compreendeu que a causa de seus problemas é a profunda desigualdade existente. 
Um sobrevivente das ruas. Um sobrevivente que como outros tantos milhares ainda encontram-se despojados das necessidades mais básicas, negligenciado por aqueles que deveriam defendê-lo. Esquecidos e achincalhados por um sistema corrupto e irracional que não proporciona  condições dignas aos futuros cidadãos. A sua cabeça agora zunia, deixando seus pensamentos confusos e desconexos. A miséria e a longa vida de indigente cobravam seu preço. Com a saúde muito frágil eram constantes aqueles mal-estares, talvez tudo isso não passasse de mais um triste delírio. Um dia acordaria e não seria preciso furtar, nem se esconder. Talvez um dia a sociedade garantisse alimento a todas as pessoas. Sonhos ainda muito distantes para a sua realidade. Seu corpo agora aparentava como a de um faminto que ele era, os seus músculos fraquejavam em tentativas inglórias de se movimentarem. A fome e a carestia silenciosamente estavam finalmente conseguindo submetê-lo a seu jugo. Gargalhadas soaram ao fundo. Devia ser outros garotos rindo das lágrimas que agora já escorriam em seu rosto. O ridículo da situação era que o menino sujo e esfarrapado havia entendido a brevidade da vida. A noite ensolarada ia se fechando paralelamente a seus olhos. Finalmente a liberdade prevalecia à opressão. Libertava-se de um corpo que já lhe havia oprimido imensamente. Chuvas e raios e trovões surgiam ao horizonte. Astros e estrelas observavam perplexos os suspiros finais de um homem. Agora se tornara verdadeiramente um homem. Um homem consciente de sua brevidade, ciente da imensa injustiça em se existirem meninos de rua. Calmamente a natureza oferecia as derradeiras honrarias ao padecimento dos solitários que têm a calçada imunda por sepultura.

(Edson de Sousa)